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MÚSICA DE IA: ESTAMOS SENDO ENGANADOS?

USUÁRIOS DE PLATAFORMAS NÃO DISTINGUEM CANÇÕES ARTIFICIAIS ENQUANTO ARTISTAS PERDEM ESPAÇO E RECEITA NO STREAMING

João Carlos

27/11/2025

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Crédito da imagem: gerada por IA

Quando você aperta o play em uma plataforma de streaming de música, quem está tocando de verdade?
Um compositor de carne e osso, uma banda num estúdio — ou um modelo de inteligência artificial treinado em milhões de faixas alheias?

A dúvida não é só filosófica. Ela mexe com três pilares da indústria: autenticidade artística, direitos autorais e renda das famílias que vivem de música. E os números de 2025 mostram que essa discussão já não é teórica: ela está acontecendo agora, dentro dos seus fones de ouvido.

Uma indústria inundada por faixas artificiais

A francesa Deezer revelou que recebe hoje mais de 50 mil músicas totalmente geradas por IA todos os dias, o que já representa cerca de 34% de todos os novos uploads na plataforma.

Ou seja: de cada três faixas novas que entram no catálogo, uma não passou por um compositor humano em nenhuma etapa.

Ao mesmo tempo, esses milhões de arquivos ainda representam uma fatia pequena do consumo: algo em torno de 0,5% de todos os streams, segundo a própria Deezer.
Mas isso não significa que o impacto econômico seja pequeno — principalmente porque boa parte dessa produção está ligada a sistemas automatizados, criados para gerar streams e royalties em massa, e não exatamente para fazer arte.

O ouvido humano não percebe a diferença

Se a sua impressão é: “eu certamente saberia quando uma música é de máquina”, a ciência diz o contrário.

Um estudo global conduzido por Deezer e Ipsos, com 9 mil pessoas em oito países (incluindo o Brasil), mostrou que 97% dos ouvintes não conseguem distinguir músicas totalmente geradas por IA de canções compostas por humanos.

Mais da metade dos participantes relatou sentir desconforto ao descobrir que havia errado o palpite — e cerca de 73% defendem que o uso de IA seja claramente indicado nas plataformas, enquanto muitos pedem filtros para evitar esse tipo de faixa.

Em outras palavras:

o ouvido não sabe diferenciar, mas o público quer saber quando está ouvindo música gerada por IA.

Isso nos leva à primeira pergunta:

Se você ouve uma música artificial achando que é humana, está sendo enganado — ou só importa se houve má-fé e ocultação?

Ferramenta criativa ou linha de montagem?

Um dos paradoxos da inteligência artificial na música é que ela é, ao mesmo tempo, aliada de artistas e ameaça à própria profissão.

Relatórios recentes indicam que:

20,3% dos músicos já usam IA diretamente no processo de produção musical — em tarefas como arranjo, edição e mixagem;

36,8% dos produtores musicais integraram ferramentas de IA ao fluxo de trabalho;

e cerca de 60% dos músicos utilizam algum tipo de ferramenta inteligente em alguma etapa (de composição a arte de capa).

Na prática, isso significa que boa parte do que chamamos de “música humana” já é, na verdade, híbrida:
humanos escrevendo, interpretando e decidindo — mas com algoritmos otimizando timbres, sugerindo harmonias, gerando ideias de letra ou “limpando” a mix.

Ao mesmo tempo, o mercado de IA na música cresce em ritmo de blockbuster: projeções apontam para um valor em torno de US$ 38,7 bilhões até 2033, com taxas anuais de crescimento acima de 25%.

Uma fatia significativa desse investimento não está na criação direta de músicas, mas em algo mais discreto — e igualmente poderoso: quase metade das aplicações de IA no setor hoje atua nos sistemas de recomendação e na personalização de playlists. Na prática, são os algoritmos que definem o que chega até você, influenciando sua escuta tanto quanto participam da construção do próprio conteúdo musical.

O dinheiro da música está indo para onde?

Estudos de mercado sugerem que a expansão da música gerada por IA pode impulsionar em torno de 17,2% a receita global da indústria musical até 2025, na comparação com cenários sem IA.

Ao mesmo tempo, a IFPI, entidade que representa as gravadoras no mundo, aponta que a receita global de música gravada chegou a cerca de US$ 29,6 bilhões em 2024, com crescimento puxado pelo streaming — mas também alerta que fraude de streaming e abuso de IA são hoje ameaças centrais ao modelo.

Aqui entra a segunda camada da discussão:

Se a “pizza” de receita cresce, mas uma fatia cada vez maior vai para plataformas, startups de IA e esquemas de fraude, o que sobra para quem vive exclusivamente de música?

Para artistas independentes e famílias que dependem de royalties, o problema não é só competir com uma enxurrada de faixas artificiais. É disputar o mesmo bolo de dinheiro com robôs que tocam para outros robôs.

Fraude de streaming: quando a música toca só para robôs

Relatórios da Deezer revelam que até 70% dos streams de faixas totalmente geradas por IA na plataforma são fraudulentos — impulsionados por redes de bots que repetem músicas em loop para inflar números e capturar parte do bolo de royalties.

Mesmo representando só 0,5% de todos os streams, essas faixas artificiais estão desproporcionalmente ligadas a esquemas de fraude de streaming, situação que já levou a casos criminais envolvendo milhões de dólares em royalties desviados.

A própria IFPI descreve esse ciclo com clareza: modelos de IA produzem milhares de faixas de baixo custo, que são despejadas nas plataformas em grande volume. Em seguida, redes de bots geram reproduções artificiais, distribuídas entre inúmeras dessas músicas. O efeito final é um “sangramento” contínuo do fundo de royalties — dinheiro que, em teoria, deveria remunerar artistas reais.

Para tentar frear essa distorção, a Deezer adotou uma série de medidas: passou a identificar e rotular conteúdo totalmente gerado por IA, removeu essas faixas das playlists editoriais e das recomendações automáticas e, por fim, deixou de repassar royalties provenientes de streams considerados fraudulentos.

O objetivo é claro: reduzir o incentivo econômico para quem usa IA apenas como ferramenta de fraude.

Spotify, rótulos de IA e o “lixo de catálogo”

A maior plataforma de streaming do mundo, o Spotify, também passou a endurecer suas regras. Em 2025, a empresa anunciou que adotará um padrão de créditos (DDEX) para identificar e rotular o uso de IA nas faixas, além de exigir que os criadores detalhem exatamente como a tecnologia foi empregada — seja na voz, nos instrumentos ou na pós-produção. Clones vocais não autorizados e outras formas de “deepfake musical” serão removidos.

No mesmo pacote de mudanças, o Spotify revelou ter apagado mais de 75 milhões de faixas classificadas como “spam”, muitas delas geradas em massa por ferramentas de IA e enviadas com o objetivo de explorar o sistema de remuneração por stream.

Em linhas gerais, as plataformas buscam um equilíbrio delicado: abrir espaço para a inovação tecnológica sem permitir que o catálogo seja inundado por um mar de “lixo sonoro” de baixo custo, que desvia recursos e visibilidade de quem faz música como trabalho artístico.

Engano ou nova forma de autoria?

Crédito da imagem: gerada por IA

Nem toda música de IA é criada para enganar. Mas vários casos recentes mostram como a tecnologia pressiona a fronteira entre experimento criativo e manipulação do público.

Um hit de música eletrônica, “I Run”, foi removido de grandes plataformas após viralizar usando vocais gerados por IA que imitavam de perto a voz da cantora britânica Jorja Smith, sem sua participação. O caso reacendeu o debate sobre uso indevido de identidade vocal e levou a acusações de violação de direitos autorais e de imagem.

No mercado de música cristã, um “artista” de gospel totalmente artificial, Solomon Ray, chegou ao topo de rankings digitais nos EUA, gerando reação de músicos que questionam se é possível falar de espiritualidade por meio de uma voz que não respira, não sente, não crê.

Também há exemplos de “bandas” inteiras compostas por IA, que acumularam público em plataformas de streaming antes que os fãs descobrissem que não existiam músicos por trás — muitos se sentiram traídos ao perceber que se conectavam emocionalmente a algo que consideravam um projeto humano.

Além disso, as três maiores gravadoras do mundo — Universal, Sony e Warner — moveram ações contra empresas como Suno e Udio, acusando-as de usar catálogos inteiros, sem autorização, para treinar modelos capazes de criar faixas que “competem diretamente” com os artistas reais.

Nos últimos meses, parte desse embate começou a avançar por meio de acordos. A Warner fechou um pacto de licenciamento com a Suno (clique AQUI e veja a matéria completa) e retirou o processo, abrindo espaço para modelos de IA treinados exclusivamente com catálogos autorizados — e com participação nos ganhos para os artistas que decidirem integrar o sistema.

Outra protagonista desse movimento é a Klay, que já assinou contratos com as três grandes gravadoras e se comprometeu a operar apenas com conteúdo licenciado, desenvolvendo modelos voltados para experiências musicais “centradas no humano”.

Esses movimentos indicam que a indústria caminha para um cenário no qual IA não desaparece, mas passa a ser regulada e remunerada dentro de acordos formais.

E para quem vive de música, o que muda?

Para músicos, compositores e suas famílias, o impacto vem em várias camadas:

Concorrência por atenção
O catálogo de streaming já é gigantesco; com IA, o número de lançamentos explode ainda mais. Ficar visível num mar de playlists onde música automatizada chega aos milhares por dia é um desafio real.

Disputa por royalties
Mesmo quando música gerada por IA ainda representa uma parcela pequena de streams, ela entra no mesmo sistema de pagamento. Se bots inflarem esses números, parte da renda que iria para artistas humanos passa a remunerar faixas criadas sem trabalho humano.

Mudança no próprio trabalho
Com ferramentas de IA barateando tarefas de arranjo, mixagem e trilha, alguns postos de trabalho (como compositores de library music ou produtores de jingles simples) podem ser reduzidos — enquanto surgem funções novas, como “diretor criativo de IA” ou especialista em prompt musical.

Dependência das plataformas
Como as grandes decisões sobre rotulagem de IA, filtros de spam e critérios de recomendação estão nas mãos de poucas empresas de tecnologia, artistas têm pouco controle sobre como são comparados a faixas artificiais dentro do mesmo ambiente.

A pergunta central deixa de ser “a IA vai acabar com a música?” e passa a ser outra, bem mais prática: quem vai se apropriar do valor gerado — e em que medida quem compõe, grava e sobe no palco continuará sendo devidamente remunerado?

Transparência é suficiente?

Há um consenso crescente entre ouvintes e artistas: transparência é o mínimo. A questão é se isso, por si só, resolve o problema. Rotular de forma clara o “conteúdo gerado por IA”, somado à possibilidade de filtrar apenas músicas interpretadas por pessoas, realmente devolve ao público um senso de escolha. Pesquisas da Deezer indicam que muitos ouvintes evitariam faixas artificiais se conseguissem identificá-las com facilidade.

Ainda assim, o rótulo não dá conta de tudo. Ele não impede o uso indevido de catálogos humanos no treinamento de modelos, não reduz a concentração de poder nas mãos de poucas plataformas e empresas de tecnologia e tampouco corrige a lógica de um mercado em que volumes imensos de conteúdo automatizado empurram para baixo a remuneração média por stream.

Por isso, além da transparência, começam a surgir caminhos complementares. Discute-se a criação de fundos de royalties específicos para faixas inteiramente artificiais, a limitação de uploads para conter o spam gerado por IA e até selos como “100% humano” em álbuns e playlists, valorizando o trabalho artístico tradicional. Também ganha força a adoção de acordos de licenciamento mais claros entre gravadoras, plataformas e empresas de IA — movimento que já aparece nas negociações com Suno, Udio e Klay, que propõem modelos treinados apenas com catálogos autorizados e remuneração compartilhada.

No fim das contas, o que importa para quem ouve?

Talvez a resposta seja menos tecnológica e mais íntima.

Se 97% dos ouvintes não conseguem distinguir uma faixa humana de uma canção sintetizada por IA, fica evidente que o nosso ouvido, sozinho, não dará conta de policiar essa fronteira.

Mas isso não significa que tudo seja indiferente.
Para muita gente, saber que há uma história real por trás de uma música — alguém que escreveu aquela letra num quarto, alguém que sustenta a família com o cachê daquele show — faz parte do valor emocional da canção.

A música sempre misturou tecnologia e criação: do microfone ao autotune, do sampler aos plugins. A diferença agora é que a tecnologia começa a disputar o lugar de autor, e não apenas o de instrumento.

Na próxima vez que você der play em uma faixa impecável, com voz cristalina e letra sem falhas, talvez valha a pena se perguntar como — e por quem — aquela música foi feita. E, se a busca for por curadoria cuidadosa, qualidade artística e a certeza de estar ouvindo obras concebidas por gente de verdade, a melhor escolha continua sendo sintonizar a Antena 1.

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