SÃO PAULO NO ESCURO: A CULPA É DE QUEM?
ÁRVORES, FIOS AÉREOS, CLIMA E CONCESSÃO: POR QUE SÃO PAULO APAGA (E POR QUE A SOLUÇÃO NÃO CABE EM UM ÚNICO CULPADO)?
João Carlos
15/12/2025
São Paulo vive um paradoxo urbano cada vez mais difícil de ignorar: uma metrópole que precisa de arborização para enfrentar ilhas de calor e eventos extremos — mas que, ao mesmo tempo, paga um preço alto quando a combinação “árvore + fiação aérea + vento forte” entra em colapso. E quando a luz some, não cai só a energia: caem semáforos, serviços, voos, água em alguns bairros, pequenos negócios, hotéis, hospitais, a rotina e a paciência da cidade.
A pergunta “a culpa é de quem?” aparece toda vez que um vendaval derruba árvores, arranca galhos, derruba postes e arrasta a capital para horas — às vezes dias — de blackouts. Mas a resposta honesta é menos confortável: a crise é somatória. É fruto de décadas de decisões (e omissões) que empilharam riscos sobre a mesma infraestrutura.
O apagão de dezembro: o que aconteceu, em números
Entre os dias 9 e 10 de dezembro, um ciclone extratropical provocou uma sequência incomum de ventos intensos sobre a capital paulista e a Região Metropolitana. As rajadas chegaram a 98 km/h, segundo medições do Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), com registros semelhantes no Mirante de Santana, onde o Inmet marcou 80 km/h. O que mais chamou a atenção dos meteorologistas foi a longa duração do vendaval, que começou ainda pela manhã da quarta-feira (10) e seguiu forte até a noite, sem a presença de chuvas — um comportamento considerado atípico e sem precedentes recentes na cidade.
O fenômeno, confirmado pela Defesa Civil como efeito direto do ciclone formado no Sul do Brasil, desencadeou um apagão em cascata. No pico da ocorrência, mais de 2,2 milhões de clientes ficaram sem energia elétrica na área atendida pela concessionária Enel. Na quinta-feira (11), estimativas apontavam cerca de 1,5 milhão de imóveis ainda sem eletricidade, enquanto, ao fim do dia, mais de 1,3 milhão de pessoas permaneciam no escuro. Mesmo após o fim do vendaval, o impacto se estendeu por vários dias: no domingo (14), o “Mapa da Falta de Luz” da própria concessionária ainda indicava 95 mil imóveis sem energia, número que caiu para cerca de 29 mil clientes na manhã da segunda-feira (15), sendo quase 19 mil apenas na capital.
Ao longo de todo esse período, prefeitura, Defesa Civil e imprensa registraram centenas de ocorrências de quedas de árvores e galhos, reforçando o diagnóstico central: em São Paulo, episódios de vento forte continuam sendo suficientes para derrubar não apenas árvores, mas também uma rede elétrica ainda altamente exposta — e, com ela, parte significativa da infraestrutura urbana da maior cidade do país.
A interrupção do fornecimento elétrico teve efeitos diretos em outros serviços essenciais. Sem energia, sistemas de bombeamento foram comprometidos, afetando o abastecimento de água em bairros da capital e em municípios da Grande São Paulo. Regiões como Americanópolis, Parelheiros, Vila Formosa, Sacomã e Vila Romana, além de cidades como Guarulhos, Mauá e Cajamar, registraram falhas no fornecimento. O trânsito também foi impactado: a Companhia de Engenharia de Tráfego contabilizou quase 300 semáforos apagados na quinta-feira, agravando congestionamentos em áreas centrais e corredores viários estratégicos.
O setor aéreo foi um dos mais atingidos pelo efeito dominó do apagão. Os aeroportos de Guarulhos e Congonhas somaram 417 voos cancelados entre a quarta-feira (10) e a noite da quinta-feira (11). Apenas na quinta, mais de 100 voos deixaram de operar. Em Guarulhos, foram registradas pelo menos 15 partidas e 39 chegadas canceladas ao longo do dia. Em Congonhas, até as 22h30, havia 67 chegadas e 52 partidas suspensas. Diante do cenário, a companhia aérea Gol chegou a interromper temporariamente a venda de passagens, em meio à instabilidade operacional.
Os terminais amanheceram em clima de caos, com filas extensas nos balcões das companhias, passageiros dormindo em bancos e informações fragmentadas sobre reacomodação e conexões. Embora o epicentro da crise estivesse em São Paulo, os reflexos rapidamente ultrapassaram as fronteiras do estado. Aeroportos do Rio de Janeiro e de Brasília também sentiram os impactos, e, nos dias seguintes, o problema se espalhou por todo o país, inclusive em cidades onde o clima permanecia estável.
Isso ocorre porque a malha aérea brasileira opera em regime de rotação contínua: uma aeronave retida em Congonhas ou Guarulhos deixa de cumprir o voo seguinte, que, por sua vez, operaria outro trecho em outro estado. O resultado é uma cadeia de cancelamentos em cascata, que amplia exponencialmente os efeitos de um evento localizado, transformando um problema climático e energético regional em uma crise logística de alcance nacional.
Diante da gravidade do cenário, a Aneel e o Ministério de Minas e Energia articularam uma força-tarefa emergencial, autorizando o envio de equipes de outras distribuidoras de energia para apoiar os trabalhos de recomposição da rede na capital paulista e na região metropolitana. A medida evidenciou não apenas a dimensão do apagão, mas também a dificuldade de resposta em um sistema já pressionado por fatores estruturais e climáticos.
A combinação que afeta a todos: vento + árvore + fiação aérea
Em episódios de ventania e chuvas fortes, a falha mais recorrente no sistema elétrico paulistano está longe de ser um mistério. Galhos e árvores atingem a fiação aérea, derrubam cabos, puxam postes, danificam transformadores e provocam desligamentos em série.
O problema se sustenta em um círculo vicioso difícil de romper. De um lado, São Paulo depende da arborização urbana para enfrentar ilhas de calor, melhorar a drenagem, ampliar áreas de sombra e preservar a biodiversidade. De outro, a rede elétrica ainda é majoritariamente sustentada por uma infraestrutura aérea exposta, vulnerável à ação do vento e às intempéries. Quando ventos fortes entram em cena, o contato entre vegetação e cabos transforma a necessidade ambiental em um fator de risco, resultando em apagões que se repetem e ampliam a pressão política por culpados imediatos, quase sempre sem que se discuta o desenho estrutural do sistema.
O gargalo da poda: quando o risco está no backlog e na coordenação
São Paulo administra um dos maiores patrimônios arbóreos urbanos do país. De acordo com dados oficiais do sistema municipal de gestão da arborização, a cidade possui mais de 650 mil árvores apenas em vias públicas, número que cresce quando se consideram parques, praças e áreas institucionais. A responsabilidade pela poda e manutenção dessas árvores é dividida entre a Prefeitura de São Paulo, por meio das subprefeituras, e a concessionária de energia, nos casos em que a vegetação interfere diretamente na rede elétrica.
Em 2025, esse sistema chegou ao período de chuvas já pressionado por um volume elevado de demandas reprimidas. Levantamento com base em dados da própria administração municipal aponta que 52.415 pedidos de poda foram registrados via SP156 ao longo do ano, dos quais cerca de 16.500 permaneciam sem atendimento, o equivalente a 31,5% do total. Em algumas regiões, a situação se mostrou ainda mais crítica. Em Itaquera, por exemplo, pedidos em aberto chegaram a representar até 80% das solicitações do ano, evidenciando um gargalo operacional concentrado em determinadas subprefeituras.
A prefeitura afirma ter ampliado as equipes de manejo arbóreo, que passaram de 122 para 162, e contabiliza, até o fim de outubro, 130 mil podas realizadas e 11 mil remoções preventivas em toda a cidade. Ainda assim, os números revelam um descompasso entre a velocidade da demanda e a capacidade de resposta. Quando o volume de pedidos cresce mais rápido do que a execução — seja por limitações de equipe, logística, licenciamento, critérios técnicos ou orçamento — o risco se acumula silenciosamente, sobretudo às vésperas do período de ventos mais intensos.
Há ainda um entrave operacional recorrente: nem sempre a equipe consegue agir quando chega ao local. A própria prefeitura reconhece que, nos casos em que a árvore está em contato ou em risco iminente de atingir a fiação, a intervenção depende da presença da concessionária de energia para desligamento ou proteção da rede. Sem essa coordenação direta, o atendimento é adiado, o pedido permanece em aberto e o risco persiste.
Outro ponto sensível é o destino do material recolhido. Galhos, troncos e resíduos de poda precisam ser removidos, transportados e descartados de forma adequada, geralmente em áreas de transbordo e triagem ou unidades de compostagem autorizadas. Quando esse fluxo não funciona com agilidade, o material pode permanecer dias nas calçadas, ocupando espaço, obstruindo vias e gerando novas reclamações. Em alguns bairros, moradores relatam que a retirada completa só ocorre após semanas, reforçando a percepção de ineficiência mesmo quando a poda é finalmente realizada.
O resultado desse conjunto de fatores é um sistema permanentemente tensionado, no qual a gestão da arborização urbana, embora essencial para a qualidade ambiental da cidade, acaba se transformando em um dos pontos mais frágeis da infraestrutura paulistana diante de eventos climáticos cada vez mais frequentes.
Crescimento desorganizado e paisagem urbana: quando a forma da cidade aumenta o risco

Crédito da imagem: Portal Antena 1
Até que ponto o crescimento desordenado da cidade contribui para as quedas de árvores e a consequente falta de energia?
A recorrência das quedas de árvores em São Paulo não pode ser explicada apenas por ventos fortes ou por falhas pontuais de manutenção. Ela está diretamente relacionada a um fator estrutural: o crescimento desorganizado da cidade do ponto de vista paisagístico, resultado de décadas de verticalização acelerada, ocupação intensiva do solo e da ausência de um planejamento integrado entre arborização, infraestrutura urbana e uso do território.
Ao longo do tempo, São Paulo expandiu seu tecido urbano de forma desigual, priorizando o adensamento construtivo sem a adaptação da paisagem existente. Árvores plantadas em um contexto de casas térreas e ruas mais abertas passaram a conviver com prédios altos, vias estreitas, calçadas reduzidas e redes aéreas densas. Esse descompasso tornou o ambiente urbano progressivamente mais hostil à própria vegetação, com raízes confinadas, solos impermeabilizados, copas mutiladas por podas sucessivas e maior exposição a correntes de vento canalizadas entre edificações.
Do ponto de vista ambiental, o cenário é agravado pela formação dos chamados “cânions urbanos”, comuns em áreas altamente verticalizadas. Nesses corredores, o vento ganha velocidade e turbulência, submetendo árvores a esforços mecânicos constantes. Estudos técnicos e científicos indicam que fatores como a altura média das edificações no entorno, a idade dos bairros e o histórico de intervenções na arborização influenciam diretamente o risco de queda, independentemente da intensidade isolada do vento. Em outras palavras, não é apenas o evento climático que derruba árvores, mas a forma como a cidade foi construída ao redor delas.
Embora São Paulo conte, desde os anos 2000, com instrumentos de política ambiental e urbana — como o Plano Diretor Estratégico, as leis de uso e ocupação do solo e planos municipais de arborização —, a aplicação prática dessas diretrizes tem sido fragmentada ao longo das gestões. A arborização urbana foi tratada, alternadamente, como ativo ambiental ou como obstáculo à infraestrutura, raramente como parte de um sistema integrado de resiliência urbana. A coordenação com outras esferas de governo, especialmente em temas que envolvem energia, drenagem, mobilidade e adaptação às mudanças climáticas, também permaneceu limitada.
Nos últimos anos, o debate ambiental avançou no discurso, mas pouco na execução estrutural. A ampliação de áreas verdes e o plantio de novas árvores convivem com podas severas, remoções emergenciais e a manutenção de uma rede elétrica aérea que exige intervenções constantes na vegetação. Sem uma política consistente de substituição gradual da fiação, escolha adequada de espécies, manejo preventivo e integração entre órgãos ambientais, urbanísticos e de infraestrutura, o risco segue incorporado ao próprio desenho da cidade.
Como consequência, as quedas de árvores deixaram de ser um problema pontual e passaram a atingir um número cada vez maior de regiões, bairros e atividades econômicas. Se no passado os impactos se concentravam sobretudo em áreas periféricas, hoje bairros centrais e nobres também sentem os efeitos de um planejamento urbano insuficiente adotado no passado. Trata-se de um passivo paisagístico e ambiental acumulado ao longo de sucessivas gestões, que expõe a dificuldade histórica de tratar a arborização urbana não como um problema isolado, mas como parte central da estratégia de adaptação de uma metrópole às transformações ambientais e climáticas do século XXI.
A Enel no centro da crise: concessão, questionamentos e respostas
A atual crise no fornecimento de energia em São Paulo reacendeu o debate sobre o papel da Enel Distribuição São Paulo, concessionária responsável pelo serviço desde 2018, quando assumiu o controle da antiga Eletropaulo, privatizada ainda nos anos 1990 e posteriormente incorporada ao grupo italiano. A concessão, válida até 2028, colocou sob a responsabilidade de uma empresa estrangeira a operação de uma das redes elétricas mais complexas do mundo, em uma metrópole marcada por alta densidade urbana, extensa arborização e infraestrutura aérea historicamente vulnerável.
Desde então, a Enel tem sido alvo recorrente de críticas relacionadas à qualidade do serviço, à velocidade de recomposição da rede em eventos climáticos adversos e à comunicação com a população durante episódios de apagão. Em momentos de crise, como o ocorrido em dezembro, essas críticas extrapolam o campo técnico e passam a ocupar também o terreno jurídico e político, tornando o debate ainda mais complexo e, muitas vezes, pouco acessível ao cidadão comum.
Nesse ponto da discussão — que vai muito além do conhecimento popular — entram questionamentos sobre contratos, indicadores regulatórios, planos de investimento, metas de desempenho e responsabilidades compartilhadas entre concessionária, poder público e órgãos reguladores. Soma-se a isso um contexto sensível do ponto de vista político, em que a proximidade de um ano pré-eleitoral intensifica disputas narrativas e amplia a pressão para que os efeitos negativos do problema não se reflitam nas urnas. O resultado é um ambiente de ruído institucional, no qual versões técnicas, jurídicas e políticas se sobrepõem, dificultando para a população compreender a real extensão e a profundidade do problema.
No episódio mais recente, essa tensão se traduziu em ações concretas no campo jurídico e regulatório. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou ofício à concessionária exigindo explicações formais sobre o desempenho no restabelecimento do fornecimento. O Ministério Público de São Paulo, em conjunto com a Defensoria Pública, acionou a Justiça, que determinou a recomposição imediata da energia para os consumidores afetados, prevendo multa em caso de descumprimento. Paralelamente, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) protocolou representação solicitando a suspensão de atos administrativos relacionados à renovação da concessão da Enel SP, até que fossem apuradas eventuais falhas na prestação do serviço.
O procurador Lucas Rocha Furtado defendeu que “sejam analisadas as condições técnicas, econômicas e operacionais da concessionária”. Além disso, solicitou que o tribunal avalie os investimentos realizados pela Enel em manutenção e modernização da rede elétrica, bem como na “prevenção de impactos causados por eventos climáticos previsíveis”. Também pediu estudos para verificar a necessidade de dividir a concessão de energia elétrica em São Paulo em lotes menores, “em tantas partes quantas forem economicamente vantajosas, com vistas à melhoria da eficiência e da qualidade do serviço prestado”. Caso essa divisão seja considerada viável, Furtado requer que a Aneel seja obrigada a realizar licitação para novas concessões, conforme reportagem publicada pelo portal UOL.
Em resposta às críticas, a Enel afirma, em nota oficial, que cumpre integralmente suas obrigações contratuais e regulatórias e que vem executando um plano de recuperação apresentado à Aneel em 2024. A empresa destaca ainda investimentos considerados recordes na modernização e expansão da rede elétrica, além do reforço estrutural de seu plano operacional para reduzir os impactos de eventos climáticos extremos, que, segundo a concessionária, têm se tornado mais frequentes e intensos na área de concessão.
A Enel também sustenta que episódios como o vendaval de dezembro fogem aos padrões históricos e exigem, em muitos casos, a reconstrução completa de trechos da rede, o que amplia o tempo necessário para a recomposição do serviço. Ainda assim, a distância entre o discurso institucional e a experiência cotidiana de milhões de consumidores mantém a concessionária no centro do debate público, especialmente à medida que se aproxima o momento de discutir a renovação da concessão, tema que passa a concentrar expectativas técnicas, pressões políticas e demandas sociais por um serviço mais resiliente e transparente.
Diante de um problema complexo, uma pergunta inevitável
Diante de um quadro tão complexo, no qual decisões do passado e do presente se sobrepõem e diferentes atores carregam pesos distintos de responsabilidade, surge uma pergunta inevitável — e cuja resposta está longe de ser simples: qual é a solução para reduzir os apagões e garantir um restabelecimento mais eficiente da energia diante de eventos climáticos cada vez mais extremos? A partir desse ponto, o debate deixa de ser apenas sobre causas e passa a girar em torno de limites técnicos, escolhas políticas e capacidade de execução.
O que pode ser feito para São Paulo parar de apagar
A experiência internacional e o histórico paulista indicam que não existe uma solução única. O caminho passa por um pacote de resiliência, distribuído no tempo. No curto prazo, medidas emergenciais incluem mutirões técnicos de avaliação de risco arbóreo antes do pico do período chuvoso, protocolos operacionais integrados entre prefeitura e concessionária para casos de interferência entre árvores e fiação, além de planos de redundância para pontos críticos como hospitais, sistemas de bombeamento e semáforos estratégicos.
No médio prazo, o foco recai sobre a modernização da rede, com automação, chaves telecomandadas e sistemas capazes de isolar falhas rapidamente, evitando que a queda de uma árvore desligue bairros inteiros. Também entra nesse horizonte a definição de corredores prioritários de soterramento, substituindo promessas genéricas por intervenções estratégicas em áreas de alta densidade, grande circulação e elevado risco.
Já no longo prazo, o debate passa necessariamente pela concessão. A renovação do contrato precisa estar vinculada a metas verificáveis, indicadores auditáveis e compromissos claros de adaptação a eventos climáticos extremos. Em paralelo, o planejamento urbano e a política de arborização precisam ser integrados, reduzindo o conflito entre árvores e infraestrutura e tratando a paisagem urbana como parte central da estratégia de resiliência da cidade.
Soterrar fios: uma parte da solução, não uma resposta isolada

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O soterramento da fiação elétrica é, historicamente, a solução mais citada sempre que São Paulo enfrenta grandes apagões. Do ponto de vista técnico, faz sentido em áreas específicas: reduz a vulnerabilidade ao vento, diminui o conflito com a arborização urbana e melhora a paisagem da cidade. No entanto, o principal obstáculo nunca foi técnico, mas financeiro e regulatório.
Projeções citadas na imprensa indicam que apenas o soterramento da rede elétrica na região central da capital exigiria investimentos da ordem de R$ 20 bilhões. Estimativas do setor apontam que São Paulo possui cerca de 20 mil quilômetros de fiação aérea, dos quais apenas 0,3% estão hoje em redes totalmente subterrâneas. Esses números ajudam a entender por que o soterramento não avança: a discussão invariavelmente esbarra em quem paga a conta e como evitar que o custo seja integralmente repassado à tarifa de energia.
Esse dilema não é exclusivo de São Paulo. Experiências internacionais mostram que redes subterrâneas costumam custar múltiplas vezes mais do que estruturas aéreas. No Reino Unido, por exemplo, estudos técnicos indicam que soluções subterrâneas podem ser até 4,5 vezes mais caras do que linhas convencionais. Além disso, o soterramento traz seus próprios desafios: reduz danos causados pelo vento, mas aumenta a complexidade da manutenção e pode tornar a rede mais vulnerável em áreas sujeitas a alagamentos, como demonstram casos recentes analisados em cidades norte-americanas.
Privatização, renovação da concessão e o que está em jogo a partir de 2028
A concessão da Enel Distribuição São Paulo tem vencimento previsto para 15 de junho de 2028, dentro de um ciclo nacional de renovações que envolve contratos com término entre 2025 e 2031. Esse contexto criou um grande jogo de empurra na esfera política.
Nesta segunda-feira (15), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou em entrevista coletiva que ingressará com uma ação judicial após o apagão. Ele cobrou a União, responsável pela regulação e fiscalização do setor de energia, e reiterou que não tem responsabilidade sobre o ocorrido.
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), defendeu na última sexta-feira (12) a intervenção federal na concessionária Enel, diante da demora no restabelecimento da energia após a ventania — posição semelhante à do governador, que também apoiou a medida.
No sábado (13), Nunes declarou à rádio CBN que ainda não há data definida para o encontro com o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
A reunião foi prometida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após cobranças feitas pelo próprio prefeito em meio ao apagão.
Em paralelo, o governo federal elevou o tom e sinalizou que a concessionária pode ser responsabilizada e até correr risco de perder a concessão caso descumpra exigências regulatórias.
A proximidade do fim do contrato amplia a pressão política e técnica sobre a empresa e sobre os órgãos reguladores, ao mesmo tempo em que levanta uma questão sensível: se não houver renovação, quem assumiria a operação de um sistema tão complexo quanto o de São Paulo?
Serviço: quais são os direitos do consumidor quando falta luz
Além da discussão estrutural, há impactos diretos sobre a vida do consumidor. Em situações de emergência provocadas por eventos climáticos, a Aneel prevê compensação financeira automática quando a interrupção do fornecimento ultrapassa 24 horas em áreas urbanas e 48 horas em áreas rurais, com abatimento proporcional na fatura. Já nos casos de danos elétricos, como queima de equipamentos, a concessionária estabelece prazos específicos para análise e resposta, que variam conforme o momento do pedido.
A recomendação é registrar formalmente a ocorrência, guardar protocolos e documentar as perdas com fotos, notas fiscais e laudos técnicos, já que o debate público sobre responsabilidades não substitui os trâmites necessários para o ressarcimento.
Quando a pergunta “de quem é a culpa?” vira desinformação coletiva
Em momentos de crise, a cidade tende a eleger um único vilão. Essa reação é compreensível do ponto de vista emocional, mas tecnicamente imprecisa. A realidade é uma cadeia de responsabilidades compartilhadas. O poder público municipal responde pelo manejo arbóreo em áreas públicas, pela priorização de riscos, pela execução e logística de poda e remoção, além do descarte adequado do material recolhido. A concessionária é responsável pela manutenção, modernização, automação e resiliência da rede elétrica, bem como pela gestão da vegetação na faixa de segurança dos cabos. Já os órgãos reguladores e o Ministério de Minas e Energia têm o papel de fiscalizar, aplicar sanções, definir metas e estabelecer condicionantes contratuais, especialmente diante da renovação da concessão.
Quando qualquer um desses elos falha, a cidade apaga. Quando todos falham um pouco ao mesmo tempo, o apagão deixa de ser apenas um problema técnico e se transforma em crise política e institucional, alimentada por versões simplificadas que dificultam a compreensão do problema pela população.
No fim, a culpa é de quem?

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Se a pergunta for quem acionou o gatilho do caos, a resposta está na combinação entre vento, árvores e fiação aérea. Mas se a questão for quem permitiu que a cidade chegasse a esse nível de vulnerabilidade, a resposta é mais incômoda: um conjunto de decisões e omissões acumuladas ao longo do tempo, envolvendo planejamento urbano, gestão ambiental, infraestrutura elétrica, regulação e investimento.
São Paulo só deixará de apagar quando deixar de tratar o apagão como um evento excepcional e passar a encará-lo como sintoma crônico de um sistema que precisa ser redesenhado. Com diagnóstico técnico, metas claras, prazos definidos, orçamento compatível e fiscalização contínua — não apenas quando a cidade já está no escuro.


